Mãos de Chuva




Não vou conseguir seguir uma ordem cronológica na hora de tagarelar orgulhosamente sobre minhas amizades mais queridas.

Na verdade, não há ordem, não há tempo.

As imagens vêm surgindo fragmentadas, e eu vou me lembrando de histórias de todos os tempos.

Uma razão especial neste momento me faz querer falar muito daquela "amiga de todos os tempos". Nossa amizade nasceu por acaso.

Ela é aquela amiga com a mesma idade, mesma intensidade, personalidade forte e definida. Macaco, como eu, no horóscopo chinês. Teimosa como toda sagitariana.
Não temos meias palavras uma com a outra. Não precisamos.
Estamos ceintes, hoje, de que nada, jamais conseguirá nos separar. E já tentaram.

Ela é aquela amiga com quem consigo ficar horas ao telefone falando tanto uma porção de bobagens que limpam a alma quando sobre os sentimentos mais profundos, que só ousamos confessar uma à outra. Ela é aquela com quem posso ser inteira, o tempo todo. Como naquela clássica situação: conhecemos todos os defeitos, uma da outra, e ainda assim nos amamos.

Muitas vezes, não concordamos com as escolhas da outra. Mas, ainda assim, apoiamos. Nossa amizade foi o que nos manteve mentalmente sãs por tantos anos. Nossa amizade nos ajudou a crescer a nos entender, uma na outra.
Nos motivamos. Nos amamos sinceramente. Nos escolhemos.

Eu morava em um edifício chamado "Cidade do Sol" - meu primeiro lar depois da casa dos meus pais. Era recém casada, e tinha pouco mais de vinte anos.
Chovia muito.
Era final de noite, por volta das 23 horas, quando eu estava chegando em casa, entrando pela porta da garagem que dava no hall dos elevadores. Não sei onde fora passear o porteiro naquele momento, mas observei que uma vizinha batia na porta de vidro que dava para rua e pedia, por favor, para que eu abrisse para ela.

Linda, alta e, apesar de seus óculos molhados de chuva, mantinha uma elegância indisfarçãvel.

Tive a impressão de tratar-se de uma pessoa frágil, vulnerável, mas extremamente dócil e educada. Descobri que era exatamente o oposto. A história de sua vida serviu de referência para mim, desde que a conheci.

Abri a porta, pois já havíamos nos visto outras vezes no hall de entrada ou no elevador.

Na próxima vez que nos encontramos no elevador, conversamos um pouco mais e quase que instintivamente a convidei a ir em minha casa. Eu me sentia sozinha ali. Ainda estava digerindo a minha nova situação de sair da casa de meus pais, largar meu emprego promissor e tornar-me "dona de casa aos 20", situação à qual me submeti, mas que já começava a me incomodar. Ela disse que estranhou o convite, já que nos conhecíamos tão pouco, mas gostou.

Algum tempo depois, ainda mais incomodada com a situação "dona de casa, aos 20", consegui algumas roupas exclusivas com uma amiga que tinha uma confecção e passei a tentar vendê-las. Minha primeira e talvez a única cliente foi justamente a amiga da chuva. Sentamos inicialmente na portaria do condomínio e depois subimos no apartamento dela para que pudesse provar as roupas. Tudo inesquecível. Foi muito especial o sabor da Coca-Cola em taças de estanho, sentadas a uma mesa de metal da Skol ( dessas de botecos no parque).

O apartamento dela ficava no lado oposto ao meu. Quase não tinha móveis.
Descobri que ela trabalhava no mesmo banco do qual eu havia me demitido havia menos de um ano. Descobri também que tínhamos funções muito parecidas no banco, e que conhecíamos as mesmas pessoas.

Descobrimos principalmente que dali poderia nascer uma amizade muito, mas muito especial. Sabíamos disso. Sentíamos isso.

E foram muitas as histórias que escrevemos juntas nestes mais de 20 anos de amizade.
Nossas histórias correram, na maior parte desses anos, paralelas. Mas, sempre fomos o ombro indispensável, uma para a outra. São histórias muito, mas muito diferentes.

Depois que saí do Banco, fiquei muitos anos sem trabalhar, tive três filhos, e ela é madrinha de um deles.

Ao longo desses anos ela fez uma brilhante carreira profissional e eu construí uma grande família.

Depois disso, ela se separou duas vezes do mesmo marido e se casou com outro.

Depois disso, eu voltei a estudar, me separei e me casei novamente.

Hoje meus filhos estão crescidos e ela terá seu primeiro bebê. Vai se casar oficialmente com o amor de sua vida e pai de seu filho, em menos de um mês. Chorei muito quando soube. Sei de todas as dores e todas as dificuldades que ela viveu nesta busca pela felicidade plena. Chorei de alegria e de amor.
Esta é a tal razão especial para querer falar dela neste momento.

E eu já amo como se tivesse realmente meu sangue.

São tantas, tantas, tantas as histórias, as loucuras, os risos e as lágrimas que marcaram esta pessoa em minha vida, que precisarei voltar a falar de nossas aventuras por muitas e muitas vezes. Escrever a respeito me faz sentir que vivo tudo novamente. E reaprender as lições que aprendemos juntas.

Fomos, uma para a outra, o diário, o travesseiro, o apoio, a crítica, o complemento essenciais na transformação das meninas que éramos nas mulheres que nos tornamos. E até as nossas brigas são engraçadas.

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